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A Lei Orgânica nº 1/2001, de 14 de Agosto (diploma que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais) sofreu, até à presente data, nove modificações, a última das quais promovida pela recente Lei Orgânica nº 4/2020, de 11 de Novembro (destinada a alargar o voto em mobilidade e uniformizar, nesta dinâmica, várias disposições relativas a atos eleitorais e referendários). Sem prejuízo, tem-se assistido, nas últimas semanas, a um conjunto de posições críticas, razoavelmente difundidas nos meios de comunicação social nacionais, da lei eleitoral dos órgãos das autarquias locais, em especial quanto às normas desse mesmo diploma que foram introduzidas, curiosamente, pela sua penúltima modificação, promovida pela Lei Orgânica nº 1-A/2020, de 21 de Agosto.

A Lei Orgânica nº 1-A/2020, de 21 de Agosto, ofereceu nova redação a seis artigos da lei eleitoral autárquica; de facto, promoveu um novo regime de inelegibilidades especiais (artigo 7º), acrescentando ao catálogo previamente existente uma inelegibilidade decorrente da celebração de contratos públicos com os órgãos das autarquias locais; detalhou novas regras sobre o direito à informação sobre o local do exercício do sufrágio (artigo 103º); mas foi, sobretudo, na atenção dedicada às candidaturas de grupos de cidadãos que a referida Lei Orgânica nº 1-A/2020, de 21 de Agosto, mais se faz notar: candidaturas de grupos de cidadãos (artigo 19º); requisitos gerais da apresentação de candidaturas (artigo 23º); regime dos recursos para o Tribunal Constitucional das decisões judiciais de primeira instância (artigo 31º); e previsão de um tipo legal de crime denominado “candidaturas e proposituras simultâneas” (artigo 170º).

No passado dia 18 de Fevereiro, a Provedora de Justiça requereu ao Tribunal Constitucional a fiscalização abstrata do nº 4 do artigo 19º, só por si e quando conjugado com o seu nº 6, da Lei Orgânica nº 1/2001, de 14 de Agosto, na redação que lhe foi dada, precisamente, pela Lei Orgânica nº 1-A/2020, de 21 de Agosto, por violação do direitos dos cidadãos de tomar parte na vida política e na direção dos assuntos públicos do país (nº 1 do artigo 48º e nº 4 do artigo 239º da Constituição da República Portuguesa). Com os mesmos fundamentos, a Provedora de Justiça requer a inconstitucionalidade consequente do nº 5 do artigo 19º, decorrente da sua relação instrumental com o nº 4.

O nº 4 do artigo 19º da Lei Orgânica 1/20021, de 14 de Agosto, na redação que resulta da sua modificação de 21 de Agosto de 2020, estabelece o seguinte: “os grupos de cidadãos eleitores que apresentem diferentes proponentes, consideram-se distintos para todos os efeitos da presente lei, mesmo que apresentem candidaturas a diferentes autarquias do mesmo concelho”. Salvo sempre melhor opinião, parece manifesto que se trata de uma redação legal infeliz, que surpreende o leitor pela notória dificuldade de compreensão que resulta deste articulado. Fica, de resto, a sensação desconfortável de que o legislador, porventura, tinha em mente uma determinada ideia, mas que não foi possível, devido à más opções lexicais, vertê-la para o texto da lei. De resto, é uma redação que contrasta negativamente com a redação anterior do mesmo artigo, que, aliás, se manteve imutável desde 2001: “os proponentes devem fazer prova de recenseamento na área da autarquia a cujo órgão respeita a candidatura, nos termos dos números seguintes”. Na sua redação original, a norma fixava uma dupla disciplina: por um lado, que existe uma diferença entre proponentes e candidatos (sendo, todavia, possível que, em determinadas listas, os proponentes viessem, também, a ser candidatos); e, por outro lado, que os proponentes das listas de grupos de cidadãos só poderiam ser aqueles que, para determinada circunscrição eleitoral, fossem aí recenseados (sem prejuízo de que os candidatos, afinal, o não fossem), nos termos definidos pela Lei nº 13/99, de 22 de Março, que estabelece o regime jurídico do recenseamento eleitoral.

Na perspetiva do requerimento apresentado ao Tribunal Constitucional, a Provedora de Justiça manifesta que, com a modificação introduzida em 21 de Agosto de 2020 ao nº 4 do artigo 19º da lei eleitoral autárquica, “passou a ser vedado a um mesmo grupo de cidadãos eleitores apresentar candidaturas, simultaneamente, a órgãos municipais e às assembleias de freguesia do mesmo concelho”; “assim é porque, nos termos dessa disposição, ao considerar-se distintos os grupos de cidadãos eleitores que apresentem diferentes proponentes, mesmo que apresentem candidaturas a diferentes autarquias do mesmo concelho, a lei passou a exigir, para que um mesmo grupo de cidadãos eleitores possa apresentar candidaturas para as eleições dos órgãos autárquicos, que a lista de proponentes seja exatamente idêntica na candidatura apresentada a cada um desses órgãos”; “ora, por força do disposto no nº 6 do artigo 19º, os proponentes devem fazer prova de recenseamento na área da autarquia a cujo órgão respeita a candidatura, pelo que a condição estabelecida no nº 4 desse preceito legal (…) é, na esmagadora maioria dos casos, objetivamente impossível de cumprir”; “assim, deixa de ser possível que, no mesmo concelho, um mesmo grupo de cidadãos eleitores (com a mesma denominação, a mesma sigla e o mesmo símbolo) apresente candidaturas, simultaneamente, à assembleia municipal, à câmara municipal e a mais do que uma assembleia de freguesia”. Esta impossibilidade legal é violadora, na perspetiva da Provedoria de Justiça, do direito constitucional de tomar parte na vida política e na direção dos assuntos políticos do país, violação esta que o mesmo requerimento faz assentar em três ordens de razões: (i) afetação grave do envolvimento dos cidadãos na promoção e salvaguarda dos interesses próprios da comunidade em que se integram; (ii) impossibilidade de o mesmo grupo de cidadãos eleitores disputar todos os mandatos a preencher; e, por último, (iii) inexistência de razões de interesse público que justifiquem a alteração legislativa.

Este é um tema cuja relevância é manifesta e de atualidade indiscutível. O requerimento da Provedora de Justiça dirigido ao Tribunal Constitucional mostra-se, inequivocamente, bem fundamentado, muito embora dele resultem pelo menos duas questões em aberto: em primeiro lugar, e sem prejuízo da sua infeliz redação, a norma contida no nº 4 do artigo 19º da lei eleitoral autárquica parece tentar preservar a ideia original (de 2001, portanto) de que há de haver uma distinção a fazer entre proponentes e candidatos e que, neste sentido, a inconstitucionalidade (eventual) da norma em questão pode resultar, afinal, não da sua modificação de 21 de agosto de 2020, mas, isso sim, da própria ideia de limitar a propositura da candidaturas de cidadãos eleitores às circunscrições de recenseamento eleitoral; em segundo lugar, as matérias relacionadas com denominações, siglas e símbolos, que, na perspetiva da Provedora de Justiça, parecem resultar prejudicadas pelos condicionalismos (presumivelmente inconstitucionais) criados às candidaturas de cidadãos eleitores, beneficiam, em norma própria (artigo 23º), e em sentido contrário, de um conjunto de prerrogativas não extensíveis às candidaturas apresentados pelos partidos políticos; ora, sem prejuízo de se reconhecer que a uniformização das denominações, siglas e símbolos é, em contexto eleitoral, um valor em si mesmo, não resulta claro do requerimento dirigido ao Tribunal Constitucional pela Provedoria de Justiça de que forma a existência de regras respeitantes aos proponentes das candidaturas de cidadãos eleitores prejudica, diretamente, essa mesma uniformização. Seguramente que o Tribunal Constitucional, na decisão que promoverá em breve, não deixará sem resposta estas e outras questões.