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Vivemos em estado de emergência (declarado e prorrogado)[1]!

A inesperada e rápida chegada da pandemia (mundial) ocasionada pelo novo Coronavírus — COVID 19, ao nosso País, para além das consequências diretas nas nossas vidas pessoais e familiares, que levou, numa primeira fase, à suspensão de atividades letivas e não letivas, encerramento de estabelecimentos comerciais tidos como não essenciais, dever geral de recolhimento domiciliário[2], entre outras medidas, teve, de forma inerente, um brutal impacto direto e imediato na nossa economia, colocando designadamente em crise a normal e regular execução dos contratos (públicos), alheio à vontade dos cocontratantes.

A economia quase parou, mas a prossecução do interesse público não, embora conheça importantes alterações (anormais e imprevisíveis), e no que concerne, em especial, aos contratos celebrados pelos municípios para prosseguir interesses públicos municipais (com a colaboração dos privados), a sua execução encontra-se prejudicada ou, até mesmo, impossibilitada, como acontece, por exemplo, com aqueles ligados ao normal e regular funcionamento das atividades letivas[3], tais como refeições escolares, transportes, entre outros.

A atividade autárquica (e pública, em geral) descentrou-se, e a prioridade passou a ser a prossecução dos interesses próprios das populações (nos termos do n.º 2 do artigo 235.º da CRP) em tudo quanto relacionado com a COVID-19.

Mas a prossecução dos demais interesses públicos continua e há uma panóplia de contratos celebrados (e a celebrar), muitos jurídica e contratualmente em “período de execução”. O que lhes acontece? A resposta a esta pergunta é – ou pode ser – multipolar.

  1. Suspensão da Execução

A resposta que o Código dos Contratos Públicos (CCP) nos dá decorre, desde logo, do disposto na alínea a) do artigo 297.º, referindo que a execução das prestações que constituem o objeto do contrato pode ser, total ou parcialmente suspensa quando se verifique a impossibilidade temporária de cumprimento do contrato (primeiro fundamento geral, constante do normativo, como se percebe pelo vocábulo “designadamente”, que se lhe segue).

Ora, no caso podemos estar, de facto, perante uma impossibilidade temporária do cumprimento do contrato, motivada por um caso de força maior, não controlável pela vontade das partes; lançando mão do n.º 2 do artigo 509.º do Código Civil, podemos entender força maior como toda a causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa, ou, na formulação administrativista da melhor doutrina (MARCELLO CAETANO e FREITAS DO AMARAL), o facto imprevisível e estranho à vontade dos contraentes que impossibilita absolutamente o cumprimento das obrigações contratuais assumidas[4].

Em muitos casos, o clausulado contratual e mesmo as próprias peças do procedimento[5] (em particular o Caderno de Encargos) são constituídas por normas que dispõem, de forma genérica e abstrata, sobre a eventualidade da ocorrência de casos de força maior e/ou fortuitos, sendo até normal, na sua formulação, estar previsto, precisamente, casos de “epidemia”… Neste caso, portanto, ab initio, as partes (contraente público e privado) estariam conscientes que tais situações poderiam acontecer, ainda que de uma forma hipotética e imprevisível, tendo, por acordo, determinado a sua consequência jurídica. Aqui, acontecerá o que estiver estipulado contratualmente.

Regra geral, e nos termos da lei, a força maior pode determinar, efetivamente, como vimos, a suspensão de eficácia do contrato, por efeito da impossibilidade temporária do seu cumprimento [a tal alínea a) do artigo 297.º do CCP], ou a exoneração do dever de cumprimento das obrigações contratuais do cocontratante e resolução do contrato, nas situações de impossibilidade definitiva de cumprimento do contrato[6] [cfr. alínea a) do artigo 330.º e, para as empreitadas de obras públicas, a hipótese de resolução pelo empreiteiro no artigo 406.º, alínea d), subalínea i)].

Deve, contudo, acrescentar-se que, se a impossibilidade (do normal desenvolvimento das prestações a que os contratantes se vincularam) se traduzir numa excessiva onerosidade para o cocontratante (que se vê confrontado com graves dificuldades decorrentes de circunstâncias supervenientes não imputáveis a qualquer das partes), mantendo-se, no entanto, o contrato, pode haver lugar à modificação do contrato [alínea a) do artigo 312.º] ou a uma compensação financeira, segundo critérios de equidade (aplicando-se o regime do n.º 2 do artigo 314.º do CCP, ). Ambas as consequências poderão ser determinadas por acordo entre as partes [cfr. artigo 311.º, alínea a) do CCP].

De qualquer forma, e em rigor, o caso de força maior reporta-se (sobretudo) à suspensão de eficácia do contrato durante o período em que ocorre o evento que põe em causa a normalidade do cumprimento contratual nos termos inicialmente acordados pelas partes, pelo que logo que cesse o evento, a execução das prestações que constituem o objeto do contrato recomeça, devendo o contraente público notificar por escrito o cocontratante para o efeito, conforme expressamente prevê o artigo 298.º, n.º 1 do CCP.

Nestes casos, diz a lei, aquela suspensão, total ou parcial, determina a prorrogação do prazo de execução, nos termos do n.º 2 daquele normativo, o que pode não ser possível, bastando pensar, por exemplo, nos contratos públicos celebrados no pressuposto do normal funcionamento das escolas e ligados ao respetivo ano escolar[7] (por exemplo, contratos de fornecimento de refeições escolares, de limpeza, de transporte, etc.); é que, recorde-se, por via do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março (entretanto já alterado), foi determinada a suspensão de atividades letivas e não letivas e formativas[8], desde o dia 16 de março de 2020, desconhecendo-se o término dessa suspensão…

Significa, pois, que outras consequências podem, na verdade, advir para os contratos públicos da COVID-19.

  • Modificação dos Contratos

Desde logo, a modificação (objetiva) dos contratos (ver artigos 311.º do CCP), instituto que nos leva a várias situações distintas (com distintas consequências), como veremos, tendo sempre em conta que, em todo o caso, as partes devem atuar sob a égide dos princípios da boa fé, colaboração ede forma proporcional, com respeito pelo Pacta sunt servanda[9].

  1. Poder exorbitante de modificação unilateral

Normalmente, quando falamos em modificação contratual lembramo-nos imediatamente dos poderes exorbitantes do contratante público (cfr. artigo 302.º do CCP), tradicionalmente atribuídos à Administração na conformação da relação contratual (ligados umbilicalmente à prossecução do interesse público que sempre lhe cabe e, portanto, ao facto do contrato ser um instrumento ao seu serviço). De facto, um desses poderes é, exatamente, o poder de modificação unilateral (ius variandi) das cláusulas respeitantes ao conteúdo e ao modo de execução das prestações previstas no contrato por razões de interesse público [alínea c) do artigo 302.º do CCP], cuja finalidade, como se percebe, é a de adequar o contrato anteriormente celebrado às mutações do interesse público, tal qual ele é percecionado pela entidade pública.

Por isso o artigo 311.º, n.º 2 prevê expressamente que “o contrato pode (ainda) ser modificado por ato administrativo do contraente público quando o fundamento sejam razões de interesse público”, a saber, “necessidades novas ou nova ponderação das circunstâncias existentes” [artigo 312.º, alínea b)]; nestes casos, por decisão do contraente público, o clausulado e conteúdo das prestações do cocontratante serão alterados, sem, no entanto, se colocar em causa o objeto do contrato (cfr. artigo 313.º sobre os limites da modificação). Acarretará, como consequência, o direito do cocontratante à reposição do equilíbrio financeiro do contrato, de acordo com os critérios enunciados no artigo 282.º do CCP [cfr. artigo 314.º, n.º 1 alínea b)].

Estamos, portanto, a falar de uma causa subjetiva da modificação (objetiva) do contrato (ela radica numa nova visão da entidade pública sobre a forma de melhor prosseguir o interesse público), que nada tem a ver com a teoria da imprevisão, mas antes com uma atuação do próprio contraente público, o que justifica que o cocontratante seja ressarcido pelos danos emergentes e lucros cessantes que sofreu pela alteração unilateral do contratado (nos modos e critérios de reposição do equilíbrio financeiro previstos no artigo 282.º).

Assim, pode ocorrer a reposição do equilíbrio financeiro do contrato através da prorrogação do prazo de execução das prestações ou de vigência do contrato, da revisão de preços ou da assunção, por parte do contraente público, do dever de prestar à contraparte o valor correspondente ao decréscimo das receitas esperadas ou ao agravamento dos encargos previstos com a execução do contrato[10].

Importa salientar que a reposição do equilíbrio financeiro não pode colocar qualquer das partes em situação mais favorável que a que resultava do equilíbrio financeiro inicialmente estabelecido, não podendo cobrir eventuais perdas que já decorriam desse equilíbrio ou eram inerentes ao risco próprio do contrato[11].

Admite-se que, nos casos convocados pela COVID-19, será uma situação menos comum (mas não totalmente afastada).

  • Fait du prince

Não perdendo tempo com explicações históricas, assumimos que o factum principis (atuação exterior ao contrato mas que o influencia significativamente, designadamente na sua primitiva equação económico-financeira) se distingue da modificação unilateral e têm consequências distintas, podendo igualmente ser aqui convocado, face sobretudo às atuações extra-municipais a que temos assistido no âmbito do combate à COVID-19.

O conceito de fait du prince previsto no CCP, apesar de alguma confusão a que CARLA AMADO GOMES já chamou a atenção, abrange três situações diversas, consoante a iniciativa da tal atuação exterior que se repercute no contrato (embora não o tenha por objeto):

  • Atuação do próprio contraente público, mas fora do exercício dos seus poderes de conformação da relação contratual (poderes exorbitantes), que determina a necessidade de uma modificação do contrato: acarretará, como consequência, tal como acontece com a modificação unilateral, o direito do cocontratante à reposição do equilíbrio financeiro do contrato, de acordo com os critérios enunciados no artigo 282.º do CCP

[cfr. artigo 314.º, n.º 1 alínea a)];

  • Atuação de outra entidade administrativa, com repercussão significativa na situação contratual do cocontratante: aqui está em causa uma atuação de uma entidade administrativa que não é parte no contrato, estranha, portanto, a ambos os contraentes, pelo que “imprevisível” para ambas as partes, mas que determina a necessidade de modificação contratual, tendo o cocontratante, em consequência, direito a uma compensação financeira segundo critérios de equidade, nos termos paralelos do n.º 2 do artigo 314.º;
  • Atuação legislativa que se reflete de modo específico no equilíbrio da relação contratual, factum principis em sentido próprio, pode igualmente levar à modificação do contrato: trata-se também de uma atuação exterior aos contraentes e ao contrato, consubstanciando, nessa medida, um facto imprevisto, e justificando igualmente o dever de compensar o cocontratante pela manutenção de um contrato com condições distintas, segundo critérios de equidade, nos termos paralelos do n.º 2 do artigo 314.º.

Esta hipótese é bem plausível face à produção legislativa diária ocorrida por causa da pandemia, pensando-se, desde logo, como já referido, nos contratos ligados ao ano escolar em curso e suspensão das atividades letivas e não letivas legislativamente definida, o que obrigará a analisar se a execução contratual se encontra afetada (total ou parcialmente) de forma temporária, ou se ocorre (ultima ratio) uma impossibilidade objetiva da sua execução (conforme supra evidenciado).

De qualquer forma, deve referir-se que os critérios de equidade, que não são concretizados pelo legislador, levam as partes para uma “zona cinzenta” e de muito difícil aplicação e incerteza, o que certamente irá aumentar a litigância junto dos Tribunais.

  • Alteração anormal e imprevisível das circunstâncias

Este é o caso previsto no artigo 312.º alínea a) do CCP, à luz da teoria da imprevisão, que determina uma modificação objetiva do contrato (ou a sua resolução, como se identifica infra) e o direito do cocontratante a uma compensação financeira segundo critérios de equidade [n.º 2 do artigo 314.º]. Tal como sucede na lei geral, designadamente do Código Civil, que prevê que possa ocorrer resolução ou modificação do contrato se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal[12], também o CCP prevê expressamente esta possibilidade sempre que ocorra um facto imprevisível, externo à vontade das parte, e que modifica as circunstâncias em que se fundou a decisão de contratar, onerando em demasia o cocontratante e ultrapassando claramente o risco normal do contrato.

Trata-se de casos em que a imprevisão produz efeitos drásticos e que ultrapassam largamente a álea ou risco normal que todo o empreendimento económico comporta, como referia MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, pelo que seria manifestamente injusto e desproporcional que o cocontratante visse o contrato continuar e sofresse sozinho o agravamento imposto pelas alterações anormais e imprevisíveis.

Nesta justa medida, o Código prevê o direito à modificação do contrato ou a uma compensação financeira segundo critérios de equidade (cfr. artigo 314.º, n.º 2).

  • Resolução do contrato

Por fim, a situação ligada à COVID-19 pode mesmo, como, aliás, já deixamos expresso, originar a resolução dos contratos.

Como dissemos supra, em casos de força maior pode haver resolução do contrato nas situações de impossibilidade definitiva de cumprimento do contrato [cfr. alínea a) do artigo 330.º e, para as empreitadas de obras públicas, a hipótese de resolução pelo empreiteiro no artigo 406.º, alínea d), subalínea i)].

A alteração anormal e imprevisível das circunstâncias pode também gerar o direito do cocontratante resolver judicialmente o contrato, no caso dos n.º 1 alínea a) e 2 do artigo 333.º, e de o contraente público também o fazer, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 335.º do CCP.

Por fim, no caso de ilícita modificação unilateral do contrato, que torne contrária à boa-fé a exigência pela parte pública da manutenção do contrato, também o cocontratante tem direito à resolução judicial, nos termos do artigo 332.º, n.º1 alínea d) do CCP.

  • Impacto nos novos contratos

Uma última nota para chamar a atenção que os procedimentos pré-contratuais chegaram a estar “suspensos”, atenta a suspensão dos respetivos prazos (desde 12 de março de 2020) por determinação da alínea c) do n.º 6 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 20 de março, em conjugação com o seu n.º 1. Contudo, o legislador emendou já o erro, através da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, alterando o artigo 7.º e aditando o artigo 7.º-A daquele diploma legal, dispondo no n.º 2 deste normativo novo que aquela suspensão dos prazos administrativos (que passou para o n.º 9 do artigo 7.º) “não é aplicável aos prazos relativos a procedimentos de contratação pública”.

Por outro lado, e como uma das primeiras medidas adotadas em virtude do Coronavírus, há um regime especial e excecional de contratação pública para contratos que tenham um objeto relacionado com a “prevenção, contenção, mitigação e tratamento de infeção epidemiológica por COVID -19, bem como a reposição da normalidade em sequência da mesma” [artigo 1.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, que veio “estabelece(r) medidas excecionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus – COVID 19”].

Fernando Pedroso
Carlos José Batalhão*

* na próxima Questões Atuais de Direito Local, será publicado um artigo sobre estas questões de contratação pública convocadas pela pandemia da COVID-19.


[1] Decretos do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, e n.º 17-A/2020, de 2 de abril.

[2] Ver, por todos, Decreto n.º 2-A/2020 de 20 de março e Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril

[3] Recorde-se que os estabelecimentos de ensino se encontram “encerrados” desde o dia 16 de março, de 2020, conforme imperativamente impôs o disposto no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 (que determinou a suspensão de atividades letivas e não letivas e formativas com presença de estudantes, nomeadamente em estabelecimentos de ensino públicos, particulares e cooperativos e do setor social e solidário)

[4] A “associação” da imprevisão à força maior vem da jurisprudência do Conseil d´État, que as distinguia.

[5] Que integram o próprio contrato, nos termos do artigo 96.º n.º 2 do CCP.

[6] Recorde-se que, tratando-se de impossibilidade definitiva imputável ao cocontratante, então estaria em causa um direito à resolução sancionatória do contrato, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 333.º do CCP, a ser exercida por parte do contraente público.

[7] Lembre-se que o início e término do ano escolar é definido, anualmente, por Portaria.

[8] Ver, por todos, artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março.

[9] Os contratos são para ser cumpridos – cfr. artigo 406.º do Código Civil.

[10] Cfr. artigo 282.º n.º 3 do CCP.

[11] Cfr. artigo 282.º n.º 6 do CCP.

[12] Sobre o assunto, ver, por todos, Acórdão da RL de 14.06.2017:  I- A alteração anormal das circunstâncias, na abrangência do artigo 437º n.º 1 do Código Civil, corresponde a uma modificação insólita ou inabitual da base negocial em que as partes tenham fundado a celebração do contrato, sendo que essa base negocial, no domínio da alteração das circunstâncias, assume caráter objetivo e deve respeitar simultaneamente a ambos os contraentes; II-Essa alteração deve, por outro lado, ser significativa, ou seja, deve assumir proporções tais que subvertam a própria economia do contrato, tornando-o lesivo para uma das partes contratantes ao ponto de, caso o contrato se mantenha nos termos em que foi celebrado, a exigência das obrigações por ela assumidas, sem se mostrar coberta pelos riscos próprios do contrato, afete gravemente os princípios da boa-fé; III- A resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias depende, portanto, da verificação dos seguintes requisitos cumulativos: – (i) que haja uma alteração relevante das circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar, ou seja, que essas circunstâncias se hajam modificado de forma anormal e que; – (ii) a exigência da obrigação da parte lesada afete gravemente os princípios da boa-fé contratual, não estando cobertos pelos riscos do próprio negócio.